O que é sagrado para você?

Morena
5 min readApr 29, 2021

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Um papo de aniversário com a Vida

Minha psicóloga me ensinou que a emoção do outro é lugar sagrado. Toda vez que lembro disso, busco ser mais cuidadosa em como me expresso, em como leio as pessoas e em como comunico o que entendo das situações. Assim respeito o que há de sagrado nelas e em mim.

Minha mãe me ensinou que as refeições são o lugar sagrado da família. Toda vez que eu lembro disso, busco valorizar os momentos que tenho à mesa, com qualquer refeição, inclusive quando sou a única ali.

Meu pai me ensinou que o silêncio é um lugar sagrado. Toda que eu lembro disso, busco aprender com o que o silêncio me traz. Longe de ser sempre paz, é muitas vezes a porta aberta ao caos interno. Mas em todos os casos, é o caminho para chegar a algum lugar melhor, mais iluminado e mais verdadeiro.

Eu não aprendi com ninguém que meu aniversário é um dia sagrado. Meus pais sempre fizeram desse um dia especial, mas não é exatamente por ter “um bolinho”. Até mesmo quando não teve, eu sabia que aquele era “meu dia”. Só meu. Tudo bem se dediquei todos os outros dias a quem precisou de mim. Nesse dia eu só precisava fazer o que eu que quisesse. E meus amigos estariam lá. E minha família estaria lá. Nem sempre todo mundo no mesmo espaço, mas nesse dia todo mundo que eu amo tem um tempo para celebrar comigo. Fui assim alimentando essa perigosa expectativa de que vai ser meu dia não só no meu mundo, mas também no mundo deles.

E hoje, a menos de um mês do meu aniversário, a vida testou de novo se eu aprendi que não se pode esperar que o que é sagrado pra nós seja sagrado para o outro.

Não é como se eu tivesse muitas frustrações de aniversário. Essa é a segunda, na verdade. E, choque, a primeira não foi na pandemia. Meu cumprir de outonos pandêmico foi incrível. A primeira vez que me decepcionei num aniversário foi aos 15 anos. (Alerta de problema adolescente, vou entender se não aguentar.)

Óbvio que eu não ia ter festa, não tínhamos dinheiro pra isso. E eu tinha participado de tantas como daminha (não sei o nome daquilo) que já estava satisfeita. Só queria ir ao cinema com meus amigos. Com a sorte de uma terça feira ser um dia mais barato para isso. Mas ninguém se dispôs. Passei umas horas chamando toda minha agenda. “Deixa pro final de semana” foi a resposta da maioria. Outros só não estavam afim mesmo. O que é super legítimo. Mas me doeu muito por ser meu aniversário. E às três da tarde dos meus quinze anos eu me senti extremamente sozinha.

Não lembro bem como narrei a cena aos meus pais quando chegaram do trabalho. Mas foi a primeira vez que lembro claramente do acolhimento deles não ter sido suficiente para me consolar. Meu pai teve o olhar mais empático que já vira até então. Até hoje ele sempre entende meu coração partido. Eu conseguia ler em cada franzido da sua testa a preocupação e a solidariedade. Cada linha dizia: “Eu sinto muito que o mundo tenha te machucado, filha, exatamente como ele ainda vai fazer outras vezes.”

Naquela noite ele me deixou escolher o que eu quisesse fazer — inclusive ir ao cinema com ele, que odeia esses ambientes. Sem humor, escolhi coisas que eu poderia aproveitar sem demandar companhia: comprei um livro e um CD. Green Day e Andrew Gottlieb, ao contrário do respectivamente.

A sinopse da obra na Amazon está assim: “Em ‘Beber, jogar, f@#er’, Bob Sullivan traído e abandonado por sua mulher, parte em uma jornada em busca da felicidade e da liberdade. Desiludido, Sullivan narra suas farras homéricas e algumas confusões (…). A única regra é não ter regras.”

Foi esse o livro que escolhi. Curiosamente, ele está na casa da minha segunda decepção de aniversário.

Ele não vai estar aqui no meu aniversário. Nem o livro nem o tomador do empréstimo. Não que isso seja um problema. Não que devesse fazer diferença. Não que a gente tenha dividido algum aniversário antes. Mas é um problema. E faz diferença. Porque eu queria que fosse diferente. Porque eu tive a esperança de que ele ia entender o quanto esse dia é importante pra mim, como todo mundo que gosta de mim entende. Porque se não fosse pra comemorar os próximos aniversários, por que raios ele fez tanto pra voltar “a ser meu amigo” exatamente nessa data há um ano atrás?

E aí a vida, em sua gentil sagacidade, sussurrou pra mim: o que ele entende diz mais sobre ele do que sobre você. O que ele faz diz sobre ele. E você, o que entende e o que vai fazer?

Obrigada, Vida. O meu aniversário, assim como todos os dias que você me dá de presente, são sobre mim. Sobre como eu escolho aplicar ou gastar meu tempo e energia. Entendo que ninguém que importa faltou comigo no meu dia ou nos meus momentos mais sagrados. Pelo menos não de caso pensado. Entendo que cada um decide com base no próprio ranking de prioridades, que eu também faço isso. Entendo que tudo que machuca sinaliza algo que precisa de cuidado. Entendo que uma batida pequena dói muito se ela pega onde já está machucado. Entendo que eu ainda estou machucada por muita coisa de antes. De antes dos 15. De depois dos 15. E do empréstimo desse livro pra cá. Obrigada por me fazer assumir essas coisas, elas são bem desconfortáveis.

Obrigada também pelo discernimento, que raramente vem de lugares confortáveis. Obrigada por mostrar que algumas dores doem mais. Obrigada por, toda vez que eu tenho dor, você me lembrar de que há muito mais para se viver do que isso. Eu sei que a gente anda em pé de guerra, Vida. Não acredito em culpa, mas assumo minha responsabilidade. Espero que possa desculpar esse e todos os meus outros deslizes. Eu gosto muito de você. Hoje entendo mais sobre isso que dizem. Você é mesmo sagrada. Obrigada por me mostrar que cada ser humano é. Que eu sou também.

Nosso ano que vem começa mês que vem. A gente vai se dar melhor. E vou te tratar mais assim, como sagrada. E você me ajuda a me tratar mais assim também. Combinado?

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Written by Morena

Eterna aprendiz na escrita e na vida adulta. Falo principalmente de (e com) amor, próprio e pelo outro.

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