No jantar da empresa (parte III)
De anos 80 ao sertanejo universitário, dançaram no carpete e aproveitaram a baixa iluminação de um bairro empresarial vazio para se sentirem invisíveis, protegidos de toda exposição do mercado. Depois de algumas músicas, sentaram-se no chão, ainda sorrindo, e dividiram histórias. De infância, de romances, de família e de futuro.
Eram quase duas da manhã quando esvaziaram a garrafa de vinho, sentados no carpete, de frente um para o outro com as pernas estendidas. O último brinde marcava o fim de um longo dia de trabalho e comemoração.
“Obrigada por me chamar pra essa reunião, Carlos. Acabou sendo a melhor que tive esse ano.”
Manu levantou sua caneca-taça, em homenagem a esse dia. Carlos espelhou o movimento e deu um gole final no vinho. Olhou para toda essa cena, tentando se lembrar qual foi a última vez em que se permitiu ser espontâneo.
“Será que alguém vai perceber se deixarmos a sala assim?” Perguntou ele, sinalizando para o ambiente. Ela riu e se levantou. Tomou seu último gole e se aproximou do chefe. Pegou a segunda caneca, a garrafa vazia e levou tudo para a copa. Vê-la assim, descalça, numa cena quase cotidiana, despertou nele uma curiosa nostalgia.
“Psiu”- ela teve de chamá-lo de volta ao presente. “Me ajuda com a mesa?”
Ele ainda se demorou uns segundos, de pura admiração. Levantou e se posicionou do lado contrário ao início da noite. Reorganizaram rapidamente a sala. Ele se agachou para pegar os saltos que se perderam debaixo da mesa.
Sentaram-se mais próximos do que o necessário. Ela calçou devagar um sapato por vez. O mais esperado a essa altura era que algo acontecesse. A tensão era quase palpável de tão densa e ambos, desde o jantar pré reunião, sentiam que podiam ser mais do que colegas de trabalho. Um passo em falso e tudo que eles imaginavam podia se tornar verdade.
Mas no mundo em que há tanto em jogo, nenhum dos dois foi capaz de se lançar por essa possibilidade. Chamaram seus carros. Manu foi a primeira a se levantar. Enquanto vestia o casaco, Carlos pegava sua bolsa e abria a porta. Desceram juntos o elevador com um leve tom de decepção. Passaram os crachás e saíram para o vento. Na noite fria do inverno da capital, foi involuntário: Carlos abraçou Manu com seu proprio casaco. Ela riu, trazendo de volta a energia de intimidade que eles descobriram há pouco.
Só teve coragem de se mexer naquela pose quando seu carro estava a 2 minutos. Virou-se de frente e começou a despedida:
“Ele está chegando. Obrigada por uma noite incrível.”
“Eu que agradeço. Gosto um pouco mais dos investidores depois de hoje.”
Riram juntos. E se inclinaram para aquele beijo na bochecha de despedida, ainda enrolados sob o mesmo tecido. Por ação do frio ou do desejo, foi mais do que o necessário. As metades de seus lábios se encontraram. Ficaram assim, juntos e imóveis, como quem evita assustar um pássaro pousado numa flor.
Bi-bi. A buzina os despertou do transe. Abriram os olhos. Ela sorriu e se despediu. Ele, ainda confuso com a recente avalanche de sensações, só conseguiu acenar de volta. Ambos chegaram em casa inundados por aquele semi-beijo. Por tudo que compartilharam mas especialmente pelo que não tinham dito.
Nas semanas seguintes, ele decidiu trabalhar de casa. Evitou o contato com direto com Manu e só participou das reuniões extremamente necessárias. Ela se aproximou das demais equipes da agência e se envolveu em projetos suficientes para ocupar duas gerações. E assim, como mandam as leis do mercado, continuaram desempenhando seus papéis.
Nem é exagero dizer que os dois encontraram a mesma desculpa para encerrar o debate interno: “E se ele tivesse feito algo? Bem, se eu tivesse feito algo algum dos dois estaria encrencado. Talvez os dois. E eu não poderia por nossas carreiras em risco.”
***
Essa comemoração de final de ano é a celebração disso também. Mesmo com a certeza de que a dúvida vai continuar, eles seguem sendo responsáveis com o que o mundo precisa e espera deles.
As sobremesas foram servidas e os últimos drinques, tomados. Na hora de se despedir, o mesmo abraço para cada colega foi destinado a ele. Parte da equipe escolheu dançar, a outra encerrava a noite com mais calma num bar próximo. Manu foi com a primeira. Carlos, com a segunda. Pelo menos por essa noite, queriam evitar que mais das próprias perguntas se formassem.