Morena
6 min readMay 7, 2021

"Ela deveria reler a história do chá." Pensou Hugo enquanto sorria para o rosto emburrado à sua frente.

Os breves oito andares naquele elevador pareciam para Alice uma eternidade. Afinal, só rodava em sua mente a curta cena da linda loira, colega de trabalho de seu noivo, sorridente e encantadora, debruçada na mesa, encantando a todos os homens presentes. Bem, esperava que todos menos um, mas não tinha certeza se podia contar com isso.

Hugo segurou a porta do elevador, Alice abriu a porta do apartamento. Tiraram os sapatos. O sorriso de encantamento dele diminuiu por perceber que ela não se animou por chegar no porto seguro do casal. Ela seguia cabisbaixa e ele, mais confuso que antes, perguntou em tom de desculpas:

- Amor, eu fiz alguma coisa?

Alice ficou a ponto de chorar. O tom de fato preocupado, o carinho, a beleza em todo conjunto que era dono daquela voz. De alguma forma, tudo que ela via gritava que jamais seria boa o bastante para o presente que recebera. Talvez ele devesse mesmo ficar com a loira.

- Não, amor. Eu só estou insegura, mas vai passar.

Ela escondia o que não sabia lidar, seguindo a lógica de que deveria dar conta de seus incômodos sozinha. Bem no início do namoro, quando Hugo ainda não conhecia esse processo e passaram pela primeira vez por um episódio desses, Alice disse: "Se eu não puder me acolher, não posso esperar que alguém faça." Logo em seguida ela subiu ao terraço para respirar e passou um par de horas ali. Voltou ao apartamento que na época não dividiam e disse que já se sentia melhor. Na cama, pouco antes de dormir, foi capaz de explicar o que sentia: durante a semana viveram uma situação em que esperou mais apoio e não recebeu. Guardou por dias o que podia ser resolvido em minutos. Só expressou quando pode controlar racionalmente como abordar o tema. E não deixou que o assunto saísse daquele momento.

Ele sabia disso. Aconteceram outras vezes. Desde que reconheceu esse comportamento que consumia tanto dela, prometeu a si mesmo que criaria melhores ambientes para que ela desse vazão ao que fazia mal guardar pra si.

Ela costumava amenizar as brigas com chá. Geralmente quando ele era quem começava a brigar, os níveis de energia estavam muito altos e “não fazia sentido inflamar com álcool a discussão já em chamas", palavras dela. Ela raramente iniciava uma briga. Quando ela se retraía assim, era a vez dele tomar a dianteira. Para ajudá-la, costumava apresentar uma bebida diferente.

Enquanto ela caminhava para guardar a bolsa e arrumar as coisas para o dia seguinte, ele se dirigiu à cozinha. Pegou duas taças, abriu a geladeira e tirou a garrafa de vinho seco ainda fechada. Caminhou até a sala e colocou o conjunto na mesa de centro. Foi até o quarto e a viu com a mesma expressão de quem segura as lágrimas, negando as proprias emoções.

- Amor? Peguei o vinho pra nós.

Alice se virou um pouco, tentando se esconder na porta do guarda roupas enquanto recuperava o equilíbrio.

- Tudo bem se eu tomar banho antes?

Era o pedido para ficar sozinha. Para chorar por qualquer coisa que a estivesse incomodando e para sair como se nada tivesse acontecido. “Claro que estava tudo bem com ela ficar sozinha. Mas não está tudo bem não contar o que houve.” E com essa ideia clara, Hugo foi até ela.

Posicionou-se atrás dela e num meio abraço tirou todas as coisas de suas mãos: toalha, roupas, cremes. Entrelaçou a mão direita na dela e ajustou o mesmo braço ao lado de suas costelas. Ela começou a sentir que ele a tirava do chão. O braço esquerdo rapidamente agarrou suas pernas e num semi giro usou-as para fechar a porta do guarda-roupas e liberar o caminho. Levou a noiva assim no colo até o sofá.

- Te adoro limpinha mas te adoro mais quando me conta o que está acontecendo. - Beijou-a e a colocou no sofá. Abriu o vinho. Encheu as taças pela metade.

- Amor... - ela deu o primeiro gole na taça. - Não é nada, você não fez nada e eu não tenho porque estar assim.

- É a menina do marketing?

Ela sentiu o rosto ficar mais quente, muito além do que poderia fazer a baixa ingestão de álcool. Sim, é a colega de trabalho perfeita.

- Você sabe que eu a admiro muito. E talvez o Pedro tenha razão, vocês dariam um bom casal.

Ela se arrependeu no segundo em que disse isso. Pedro era um dos bons-mas-sem-noção amigos do noivo. Não percebeu que Alice estava por perto quando fez o comentário.

- Você ouviu o que eu respondi pra ele?

- Não, aproveitei que não tinham me visto chegar e fui pegar uma cerveja. - ela enchia a segunda taça para si mesma, torcendo para que eventuais lágrimas se misturassem com o sabor da uva.

Ele deu mais um gole da sua enquanto via a mulher mais forte que conhecia naquela insana luta contra o que ele demonstrava a todo momento: ciúmes, insegurança, medo de perder a pessoa que mais importa no mundo. Ela não sabe, mas ele fica um pouco mais tranquilo quando pode se ver nela dessa forma. Quase todo o restante do tempo ele duvida ser o suficiente para ela.

Ela percebeu que ele a admirava e já se sentia mais acolhida. Funcionou melhor que o banho. Deixou a segunda taça na mesa, encostou as costas no sofá e estendeu a mão para ele. Ele aproveitou a deixa, a puxou pra mais perto e a abraçou com as pernas. Ela não tinha opção mais confortável que fazer o mesmo, se colocando de frente pra ele e sentando assim como se diz "perna de índio".

Mesmo com toda vontade do mundo de fazê-la sentir-se segura com o toque físico, ele hoje entende melhor que as palavras fazem diferença. Por isso, repetiu o que respondeu ao amigo:

- Não tem nada no mundo que me faça desistir do amor da minha vida. Não tem opção melhor que estar com a mulher que eu escolhi e não sei por qual milagre me escolheu também. Não existe casal melhor que aquele que é feliz junto. E eu tenho certeza que ninguém vai me fazer tão feliz na cama quanto a minha noiva.

Ela estava entre lágrimas e sorrisos.

- Tá fazendo minha propaganda fácil assim?

- Especifiquei pra ele saber o quão sério é o assunto pra mim. Eu te amo. Te acho a mulher mais linda do mundo. E não preciso saber quem mais existe nele.

- Mas elas sabem que você existe.

- Hum - ele só conseguia pensar em um exemplo bastante perigoso para esse momento. Decidiu seguir com esse mesmo.

- Sabe o chefe que quer casar com você? É a mesma coisa. Sei que tem gente legal afim de mim, e que tem gente legal afim de você. Sei que nenhuma delas está a seus pés e me esforço pra desbancar qualquer um que queira te levar embora. Antes eu realmente me sentia num campo de batalha, como se qualquer erro tático me fizesse perder chances com você. Até você me mostrar que não existe competição. Que a escolha que fazemos diariamente é sobre nós dois. Claro que tem o mundo lá fora, ok, mas ele não interfere mais do que como estamos aqui. E, amor, estamos bem. E vamos ficar bem. Porque a gente se escolheu. E eu tenho sorte pra caralho por você ter me escolhido.

Ela ficou todo esse tempo hipnotizada. Lembrava dessa conversa, da discussão que tiveram em posições trocadas. Lembrava de como tentou transmitir a ele toda a certeza que tem sobre o amor que sente. E agora estava ali, emocionada por ver em atos e palavras o significado de reciprocidade. Permitiu que a força daquelas palavras a atingisse. Beijo-o com toda a sua emoção, sentiu que dividiu uma lágrima entre as suas bochechas enquanto se movia para que se levantassem, só o suficiente pra que ela sentasse com os joelhos no sofá, ainda de frente e por cima dele.

Nessa dança em que é proibido ficar a mais de 15 cm de distância um do outro, conseguem sempre transmitir o que sentem - do amor ao desejo. E nessa noite não seria diferente.

Olhando-se assim tão de perto, ambos se perguntavam como tiveram tanta sorte.

- Eu te amo. - Disseram ao mesmo tempo. Riram juntos. Ela esticou os braços enquanto ele a segurava pela cintura para pegar as taças. Beberam num divertido silêncio de quem espera o futuro com curiosidade. Esvaziaram as taças e as devolveram à mesa com o mesmo movimento. Ainda sorriam quando ele comentou:

- Liberada para o banho, mocinha.

- Vai comigo?

Ele a carregou até o banho. Deixaram a garrafa de vinho aberta na mesa. Afinal, esse era um assunto muito mais urgente.

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Written by Morena

Eterna aprendiz na escrita e na vida adulta. Falo principalmente de (e com) amor, próprio e pelo outro.

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