Bons motivos para continuar existindo
Texto de novembro de 2023.
Cheguei no escritório com uma estranha vontade de não existir. Não tenho impulsos suicidas, mas já flertei com a ideia da não-existência antes. Às vezes, penso em evaporar no ar, me encolher até me tornar um grão insignificante no universo — inconsciente, sem dor. Apenas silêncio, inércia e descanso. Parece tão mais pacífico do que qualquer outro lugar ao qual eu possa chegar na existência humana.
Foi assim que começou aquela manhã de quinta-feira. Desejava ser uma folha numa árvore, uma pedra à beira-mar — algo que não precisasse lidar com as pressões da consciência. Após anos de terapia, sei que esses pensamentos não são um lugar seguro para ficar.
Acionei meu melhor amigo.
Enquanto esperava sua resposta, procurei me lembrar das coisas que me ajudam a valorizar a existência. Talvez que se pudesse me dizer coisas boas e mais-ou-menos racionais sobre vantagens de existir, a vontade contrária seria aliviada. Ao invés de ignorar que eu estava mal, preferir dar as mãos para essa sensação e deixá-la me contar do que precisava para ir embora.
Foi assim que escrevi à seguinte lista.
Bons motivos para continuar existindo:
- Passa rápido. Mesmo que eu viva aí mais uns 60 a 80 anos, é um instante perto da eternidade de descanso que, se Deus quiser, terei quando voltar a ser pó de estrela.
- É uma experiência rara, matematicamente falando. Dentre as muitas coisas que eu podia ser (pedra, folha, tigre ou ameba) sou um ser humano e posso experimentar a partir desse lugar. Mesmo que hoje esteja um lugar emocional, cansado ou doloroso, em outros momentos já senti e sentirei coisas diferentes. E todas elas são válidas. Compartilhadas com a humanidade e únicas. (Consolidei esse pensamento pela primeira vez para ajudar uma amiga. No ano seguinte, eu que precisei dele. Foi também a origem da reflexão: A vida é muito rara).
- Sou uma das formas do Universo se conhecer melhor, experimentando através da minha existência um novo mundo de possibilidades. E essa ideia não é só minha, muito antes de mim o Carl Segan já falava isso aqui. Grande homem.
- Tem gente que me ama. Se não conseguir me manter de pé sozinha, essas pessoas vão conseguir me ajudar.
- Ainda não conheci nem o México, nem a Espanha.
- Ainda não naveguei pilotando um barco. Nem tô perto disso. E não fico mais perto se eu parar agora. Isso não é tão importante assim, mas parece importante ter algo grande nessa lista.
- Ainda não fiz todas as tatuagens que eu quero.
- Café. Não dá para tomar café sendo um grão de poeira cósmica.
- Amor. Não dá para sentir amor sem a consciência de sentir. Não posso sentir, admirar ou me emocionar com o amor sem estar viva. E sofrer pode ser um efeito colateral de amar — ou até mesmo um componente crucial da capacidade emocional humana.
- Escrita e comunicação. Só consigo me expressar, usar minha voz e minhas palavras, enquanto existo.
- Interações sociais (humanas ou mamíferas). Abraçar um doguinho, dar risada com um amigo bebendo cerveja gelada, são experiencias que eu só posso fazer enquanto num corpo físico.
- Admirar novas flores e plantas. Gosto das cores, dos cheiros e das formas de plantas.
Olhar para minha existência de novo, através dessa lista, me ajudou a enxergar mais do que apenas o cansaço e a ansiedade. Me ajudou a ver além da falta que parece sempre habitar o cômodo ao lado. Mesmo chorando, consegui reconhecer mais do que apenas a areia que me enterrava naquele dia. Foi nesse momento que meu amigo ligou.
Conversamos. Expliquei que às vezes o mundo pesa demais e eu me sinto enterrada em um deserto. Quanto mais luto para subir, mais eu me canso. E quanto mais cansada, menos quero lutar. Sua escuta atenciosa foi tirando a areia que me cobria. Eu respirava, as lagrimas secavam, meus olhos voltaram a ver mais luz e eu já não me sentia esmagada.
Acalmada a tempestade de areia com ajuda da rede de apoio, começava a caminhada para fora do deserto. Essa parte é uma ação individual. Começa olhando de novo para o deserto, depois da tempestade. Quando a visão clareia e a poeira abaixa, vou dando os primeiros passos na direção do que parece ser a fronteira entre o deserto mental e o mundo real. Ao longo do dia outras rajadas de vento e areia me atingem. Afinal, a cura não é imediata nem linear. Passo por um espelho e penso em como as pessoas se sentiriam se eu não estivesse mais aqui. Olho para tudo de que devo cuidar e tenho medo de não dar conta. A sensação de que viver bem, de forma equilibrada, parece a anos-luz da minha realidade.
Curiosidade: nesse dia que eu estava no meio de uma viagem no litoral, onde tudo a minha volta era espaço e água. A sensação da aridez interna, de seca da esperança, das vontades, me pegou numa contraditória surpresa. Por isso esses reservatórios externos são importantes. Minhas listas de coisas que importam, meus amigos que irrigam meus sonhos e estendem a mão em qualquer tempestade. Senti ali uma gratidão imensa por todos eles.
E ficou bem mais claro. A seca vem. Se você tem alguma desregulação sobre os neurotransmissores, elas podem ser ainda mais fortes. Sempre temos dias difíceis, desafios emocionais e momentos em que existir (especialmente sendo latino-americano) pode mesmo te fazer duvidar. E você precisa ter preparado seus recursos. Prepare-se todos os dias. Irrigue seus campos. Nutra suas sementes e arvores. E resista as tempestades. Elas passam. E a água levará embora essa aridez.